O Rugido das Onças

Acordou, bom dia!

Aurora Jamelo

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Faz alguns meses que desejo escrever esse texto. Faz pouco mais de um ano que essas questões começaram a tomar força dentro de mim. Faz uma vida, essa minha, que ando com poucas dessas palavras no meu sangue.

Sagrado Feminino.

Desde que me entendo por mulher trans, o dia 8 de março sempre foi uma questão. Assim como a maioria das datas que comemoram ou desejam felicidades em períodos que não tem muito o que comemorar, o dia das mulheres vem carregado com outras dores e dúvidas.

Em Recife, nessa data, acontece anualmente a Marcha das Vadias, um movimento que surge no Canadá, mas toma força mundial como um ato em luta pelos direitos das mulheres, busca por equidade e liberdade de expressão de gênero.
A concentração é o lugar de encontrar as parceiras de caminhada, se organizar com arte, música, palavras de ordem, coisas que soam inspiradoras para muitas, mas que infelizmente já me tirou a vontade de ir a luta algumas vezes.
O 8M se tornou um dia em que não falo muito de mim, porque não vejo muito de mim nos cartazes e camisas com desenhos de útero, com palavras de ordem que tornam a falar das bucetas, com o feminino que sangra a partir da vulva. Estar num ato que resume parte da minha vivência em símbolos que não são meus, nem exclusivamente femininos, é um sentimento de estar perdida dentro de casa e sozinha no meio de muitas.

Onde é que eu estou no sagrado feminino?

Não, essa não é uma declaração contra o útero, até porque ele é importante pra todas, todos e todes nós, num é mesmo?
Há algum tempo estive pensando nisso olhando pra minha mãe. Eu vim dela. Essa mulher que sou, que se descobriu mulher enquanto experimentava a vida, veio do útero da minha mãe, uma “casa” que me gerou, lugar esse onde com certeza eu não estava sozinha.
O debate que provoco é enxergar o útero pra’lém de um símbolo que resume o ser mulher, a feminilidade. O sagrado feminino é agressivo pra mim porque ele é disseminado em cima da devoção da vulva. Acho que se a gente quer mesmo falar sobre mulher, o feminino (na vida, na arte, no trabalho), a gente precisa buscar falar mesmo de todas as mulheridades.

Enquanto uma travesti for expulsa de uma celebração feminina em tons ardentes de transfobia, o sagrado feminino não será tão sagrado assim, muito menos uma ode ao feminino.

Sonhos.

Desde de que Babi Jácome me convidou a fazer parte do projeto “O Rugido das Onças” eu comecei a ter sonhos relacionados a minha feminilidade e as mulheres ao meu redor. Um deles, guardo imagens até hoje, como se pudesse fechar os olhos e estar no mesmo lugar, luz e sombras, que estava no sonho.

Te conto:

“A temporada de espetáculos estava fervendo na cena Recifense. Eu, por ser atriz e bailarina por desaforo, estava em dois espetáculos completamente diferentes que tinham ensaio naquele mesmo dia.
Madrugada. Acontecia o primeiro ensaio do dia, um espetáculo de dança contemporânea que estava beirando estrear. O mesmo aconteceria nas ruas, por isso a madrugada era o único horário possível para se ensaiar sem grandes interrupções.
Ensaio de marcas, entradas, saídas. Marcação de luz, prova de figurino, intervalo para beber água, passar correções…

Na marca para começar tudo de novo.

Enquanto na coxia, esperando a hora da entrada em cena, acompanhada de outras bailarinas e Loui*, um amigo íntimo, meu corpo gela. Sinto como se pudesse ouvir qualquer movimento que acontece no meu corpo. O burburinho externo vira quase um silêncio. Me olho corpo abaixo e percebo uma mancha escura na minha calça de ensaio. Essa mancha se expande lentamente enquanto observo inquieta. Incerta, com alguns dedos, toco minha pele sob a calça próximo à virilha, talvez por não querer acreditar no que estava acontecendo, afasto minha mão vagarosamente e então vejo sangue.
O burburinho externo retorna. Congelada na mesma posição mantenho o olhar em direção à duvida.

— Eita, amiga, tu tá menstruada! — Observa Loui.

Mas eu não menstruo, penso comigo.

— Olha, a gente já vai entrar em cena. Limpa os dedos aqui na minha camisa mesmo. — Conclui ele.

Loui pega minha mão e limpa meus dedos em sua camisa. Ainda confusa, mal consigo entender como agir. Questiono porquê ninguém está achando aquilo estranho, porquê as meninas só olharam mas reagiram naturalmente, porquê todo mundo, menos eu, achou natural uma travesti menstruar.

Por que eu menstruei?”

*nome fictício.

Acordei. E acordei como se ainda estivesse no sonho, confusa, sem saber como reagir. Certifico que não há sangue. Não, nada, claro.

Mas por que eu menstruei?

Ferida. Ou vulva?

Pra mim, mais um processo artístico de privilégio, quase que comercial. Mais um “edifício” construído, desenhado por uma arquiteta e realizado por peões de obra. Uma ferida vazia.
Mesmo que uma ferida de fato, no sentido de machucado, ela não chega até mim, porque ela não tem a verdade das minhas dores. Talvez a única verdade é que a obra é uma ferida aberta por homens.
E se falando então sobre as referências à vulva, ao sagrado feminino e à mãe terra que sangra, é como se tivessem enterrando minha vivência com a terra que tiraram dali pra abrir aquela fenda.
Abrindo o rasgo e jogando a terra em cima de mim e das minhas

Catou?

A travesti como onça.

“Pensar a travesti como onça é levar a perspectiva das perseguições e resistências urbanas como uma floresta.”
Hilan Bensusan

Esse pensamento foi levantado por Valentina Homem, uma das integrantes do projeto “O Rugido das Onças”, durante o processo de pesquisa e reconhecimento desse animal no comportamento humano.
Ler essas palavras foi como acessar uma nova leitura da minha vivência, um redesenho do que estar viva em sociedade pode significar.

Ser onça em sociedade é estar exposta as atrocidades dos caçadores cis. Perseguida, cercada e morta por puro prazer de caça, por uma insegurança de ego que não suporta o mínimo de convivência com minha existência. Por um medo indescritível, mas um fetiche maior ainda.
Ser onça na mata, é estar com os meus e com as minhas, viver os prazeres de ser sem receio. Descansar em paz, dar e receber afeto. Mas assim como nas caçadas e queimadas, eu, onça, mulher trans, estou sendo morta a tiros, facadas e fogo.

“A onça é a grande predadora das florestas ameríndias, e pra pessoas Yawalapíti por exemplo, animais, humanos e espíritos são perspectivas. Uma travesti é uma onça para os humanos cis, e um espírito para os animais do planeta.
A trans é um espírito para todos os bichos. “Bichas” do planeta sufocadas pelas identidades e fidelidades cis.”
Hilan Bensusan

O Rugido das Onças.

Babi encontrou no seu processo como mãe e pesquisadora de vestuário e moda, a vontade de renascer e rugir novos partos a partir daquilo que é dela, mas também é da história do mundo. Pra compor esse ritual, ela convidou outras mulheres a explorar com ela esse encontro do seu sagrado com as diversas expressões do feminino que somos.

Em abril de 2021, nos encontramos juntas, brevemente afastadas do caos do mundo, afim de nos reconhecermos uma nas outras.

Foram três dias de troca, bordado, punch needle, pintura, conversas sobre maternidade, provas de arte para vestir, fotografias, danças pra si, danças para a câmera sob a lua, fogueira incendiando, “espumamis” e palitos, água de coco, biscoito de morango, pagodes e maria betânia, fofocas edificantes, vitamina de banana sem lactose, almoços deliciosos e tonton desejando “acordou, bom dia!” a todos os cantos de uma casa que por si só conta história de outras mulheres, mas agora também carrega as histórias das onças.

Me senti em casa, e não estava sozinha. Não é por menos que desde que nos despedimos, tenho frequentes sonhos com essas mulheres, juntas em outros, vários e qualquer lugar que nós queiramos estar. O Rugido das Onças é meu sagrado feminino.

E você pode assistir aqui: https://www.instagram.com/p/CRsR_LxFFj8/

Quando acordar, dê bom dia.

Ilustração da capa por Isabella Galvão para “O Rugido das Onças”

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